Manuel Igreja

Manuel Igreja

Conto de Natal : O menino de sua mãe

Enviuvou cedo. Quis a má sorte que coisa ruim corroesse o seu companheiro e não houve promessa feita a tudo o que é santo, ou remédio recomendado pelos mais sabedores doutores que valesse ao seu homem a ponto de lhe salvar a vida, ou pelo menos de o deixar andar por cá, por este vale de lágrimas, pelo menos até o filho que Deus Nosso Senhor lhes deu tivesse o amparo do pai até seu rapaz feito.

Morreu-se-lhe o companheiro Ricardo, ficando-lhe entre mãos e só a seu cuidado o fruto de ambos, o filho António Pedro, um regalo de moço, orgulho do seu orgulho. Bem sabia que aos olhos de uma mãe não há ente mais bonito que o que lhe sai do ventre, mas imodéstia à parte, Rosalina sentia o peito a inchar-se-lhe sempre que lhe gabavam o seu rapaz. Quando olhava para ele, até lhe parecia um inglês daqueles que ela via nas quintas do Douro nos tempos em que por elas ganhava o pão da boca em redor das videiras, provento de tantas e tantas sofridas vidas.

Já o pai que partiu não era nada de se deitar fora. Só ela sabia os momentos de ciúmes sentidos, quando persentiu ou pelo menos assim cuidou, que uma serigaita lhe rondava o marido assim que nem raposa com o olho em galinheiro sortido. Não disse nada, até porque certezas de coisa havida não chegou a ter, mas que as entranhas se lhe revolveram, isso revolveram.
Mas isso são águas passadas. O certo, é que ainda em idade de botar mais filhos ao mundo, ainda viçosa, enlutou, ficou sem esteio. Não há volta que não tenha sido dada para espantar a mulher da foice, mas não adiantou. Até o escadório da Senhora dos Remédios subiu de joelhos com três voltas à capela. Mas não a ouviu a Santa. Ficou a braços com o filho e com as voltas que a vida tem de levar para ser tocada para a frente.

Foi o que fez. Arregaçou as mangas e deitou-se às tarefas com afinco. Fez questão de educar o filho como um homem, preparando-o para ser alguém tanto no ser como no haver. Com muito sacrifício, pô-lo a seguir os estudos até onde ele quis. Por ela, o rapaz tinha ido a doutor em Coimbra, mas não o contrariando, por ser escolha só dele, deixou que encarreirasse para o curso de enologia na Universidade de Vila Real. Que não lhe perguntassem o que aprendeu, mas sabia que tinha a ver com coisas do vinho e com a maneira como dele se trata. Mas pronto. O filho assim o quis, assim o teve.
Tirando a desgraça que foi o ter ficado cedo sem marido, Rosalina sentia que não lhe era madrasta a vida. Sabia que podia erguer as mãos para o Alto a agradecer e não hesitava em fazê-lo. Uns a seguir aos outros, os dias iam correndo a contento, tirando uma coisa ou outra de menor aflição.

As primeiras nuvens começaram a surgir, foi quando terminado o curso, não havia maneira de o seu António Pedro encontrar trabalho. Procurou por o tudo o que quinta, adega ou empresa, mas foi em vão. Deu consigo a cismar e a não perceber, mas foi-se habituado à ideia de que a páginas tantas só no estrangeiro se encontraria o caminho em direcção ao futuro do seu filho.
Foi o que sucedeu. Depois de mais uma vindima em que o filho deu umas semanas de trabalho para logo se ver sem ter que fazer, caiou-se-lhe a alma de negro. Sem saída por cá, o filho ia abalar para a Austrália. Ela não sabia assim de repente onde era semelhante sítio, mas quando ele lhe disse que de avião eram quase dois dias de jornada, até o coração lhe caiu aos pés. Nem sabia que tal lonjura era possível. Não tinha bem noção. Ela que no dia em que foi dar ao cimo da serra do Marão em passeio, ficou admirada por não saber que o mundo era aquele mar de terra que de lá se avista, jamais podia supor que tal distância fosse possível. Mas era e ia colocar-se agora entre si e a razão do seu ser.

Conformou-se, mas não deixou de sofrer. O filho partiu, ela ficou em corpo inteiro, mas foi como se lhe tivessem arranco um pedaço de si. Não foi na viagem, mas o seu pensamento ocupou todo o avião. A raiz ficou em chão do Douro, mas que nem vide em ramada estendeu-se até lá ao fim do mundo, adubado pelas saudades que doíam ao ponto de fazer sangrar o espírito. Sabendo o filho no outro lado da terra, só lhe apetecia esburacar por aí abaixo com um ferro para o espreitar pelo buraco aberto.
Habitou-se mas não se conformou. O sol nascia, mas era sempre pálido. Pelo Natal, então o inverno era completo. A presença da ausência do seu António Pedro, tornava-se aguilhão. Era um verdadeiro ferro em brasa numa ferida que a ia consumindo aos poucos. Valia-lhe o presépio que fazia, coisa bonita de ser ver. Tinha jeito para a costura, e todos os anos vestia as figuras a rigor. O São José, então era de se lhe tirar o chapéu. Tinha especial devoção por ele. Admirava-o enquanto pai, imaginando-o um marido dedicado sempre extremoso para um filho que sabia não ser completamente seu.

Viveu alguns anos sem que o filho lhe tornasse aos braços. Escreviam-se, ia sabendo dele e de mais a vida que ia construindo por lá, mas crescia-lhe cada vez mais a necessidade de o estreitar, de o apertar contra o peito sentindo-lhe o calor e o respirar. Sentia-se a desfalecer por lhe ir pesando cada vez mais a idade, sabia que a via se estreitava, mas não se importava. Olhava para trás, e gostava do que via por sentir que tinha valido a pena e que tinha cumprido o seu papel. Só não queria, era fechar o capítulo sem tornar a ver a luz dos seus olhos.
Naquele ano, ao desmanchar o presépio fez uma jura. Prometeu a São José que lhe faria um manto com o tamanho real do homem que ele foi. Com o jeito dela, seria obra de deixar envergonhado qualquer rei mago. Só lhe pedia que ele fizesse com que no Natal seguinte o seu menino lhe entrasse portas adentro. Deitou mãos à obra, e elaborou uma peça capaz de pedir meças à da mais pintada artista de dedal e agulha.

Embebecida, olho para o manto e tomou uma decisão que logo formulou em desejo escrito a ser lido depois de morta. Que lhe cobrissem o caixão com ele era o seu último querer. Chegada à preparação de mais um presépio, o São José teria de se contentar o com a roupa do ano anterior, mas estava certa que ele compreenderia bem e não lhe levaria a mal.

Entrou o Dezembro e ela com a obra pronta. Restou-lhe esperar por novas que lhe dissessem da vinda do filho, mas era como se ele a tivesse esquecido. Escutou o vento para ele lhe sussurrar notícias, dava por si a perguntar aos pássaros que correm tudo para saber por eles do filho, mas nada ouviu, nada soube.
Ao costume preparou a consoada. Sem ver o que fazia, colocou mais um prato na mesa. O coração adivinhava-lhe qualquer coisa, num pressentimento que se tornou real. Por entre o som da ventania, ouviu o ladrar do seu nero, o cão que lhe minorava a solidão quase como se fosse gente. Porta adentro, viu entrar um raio de luz. Era o seu António Pedro em carne e osso, são e escorreito. São José estava-lhe a pagar o manto.

No presépio a estrela de Belém mexeu-se no firmamento e as figuras começaram a cantar aleluias. Não sabia bem. Podia ser de si. O que sabia com toda a certeza, mesmo sem saber explicar, é que o manto que São José tinha, era igualzinho ao outro, ao que um dia a aconchegaria na viajem para junto dos que lhe haviam partido e não voltavam para junto de si como voltou o seu menino.


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