Confrontado diariamente com a exigência geral de rigor que vigora nos países mais avançados da velha Europa, dou comigo a protestar frequentemente contra o que representa o nosso tradicional desleixo e a tecer críticas que me doem no mais íntimo do meu ser português. Em momentos mais raros, é-me, porém, muito grato referir o que são os bons exemplos dos melhores dentre nós e que, infelizmente, às vezes só reconhecemos tarde demais. Quero hoje referir-me a dois desses exemplos, ambos do meu concelho, que me alimentam a certeza de que nem tudo é mau.
O primeiro é a Associação Recreativa e Cultural de Pombal de Ansiães, criada há vinte e cinco anos por um punhado de jovens na aldeia do Pombal, e que, de então para cá, tem desenvolvido intensa actividade cultural, desportiva e recreativa, estando presente na maioria dos eventos culturais do concelho. Construiu ao longo destes anos um razoável patriomónio edificado, muitas vezes com o próprio trabalho dos seus membros, possuindo instalações administrativas condignas, sala de espectáculos e recinto desportivo; mantém um grupo permanente de música sob a direcção duma jovem de talento, levou à cena várias peças de teatro, não falha a celebração duma festa tradicional do calendário religioso ou profano, já promoveu concursos de vinhos e acções de formação para vinicultores, mantém o único periódico do concelho e, acima de tudo, ultrapassou há muito as fronteiras regionais para projectar a nível nacional e internacional o FARPA, o seu Festival de Artes. E isto foi feito numa aldeia com pouco mais de trezentos habitantes, isolada no meio dos montes, com o esforço de um bom grupo de voluntários de todas as horas e um permanente apoio da população local.
Tudo isto é, evidentemente, fruto duma enorme abnegação, da capacidade de colocar muitas vezes os interesses privados em segundo plano para atender ao bem comum, de sacrificar algum confortozinho egoísta a uma atitude solidária e colectiva.
O segundo exemplo é o Centro Paroquial de Fontelonga, também no concelho de Carrazeda de Ansiães. E a razão que me leva a referi-lo hoje é, infelizmente, a tristeza de ter tomado conhecimento da morte do seu criador e principal animador, o padre Fernando Antonione da Silva Ribeiro. Natural de Provezende, no concelho de Sabrosa, terminou o curso de Teologia no Seminário de Bragança. Dotado de múltiplas capacidades, é dele o desenho da peanha que sustenta a estatátua de São José no exterior do seminário. Chegou às suas paróquias em 1958, tendo suscitado de início algumas animosidades e controvérsias, já que o seu rigor espiritual e a sua exigência de qualidade cívica chocavam então com uma certa lassitude de comportamentos e com práticas tradicionais. Ao longo dos mais de quarenta anos que levava de pároco foi conquistando paulatinamente a compreensão e o respeito dos seus paroquianos.
A sua principal obra no campo social foi o centro de terceira idade a que dedicou uma parte importante dos seus esforços. Erigiu uma obra que é hoje um exemplo de assistência à terceira idade, com internato para umas boas dezenas de pessoas e assistência domiciliária a toda a aldeia. O lar de idosos é um exemplo de dignidade e de respeito por aqueles que ali se acolhem. Tive oportunidade de o visitar no Verão passado e fiquei surpreendido com a capacidade de realização, de inovação, de entreajuda dos poucos assalariados e alguns voluntários que gerem o quotidiano do lar. Em conversa que se adivinhava de confidências, o padre Fernando manifestava-me um especial carinho por aquela obra, onde investiu a sua inteligência, a sua vontade e até o seu trabalho físico; com um resto de amargura na alma: não podia esquecer desconsiderações e chacotas de uns poucos que não só se recusavam a ajudar como faziam troça do seu esforço. Perdoava-lhes, naturalmente, levando tudo a débito duma ignorância atávica.
Ao olhar para os dois exemplos referidos, sinto algum reconforto interior e penso que, afinal, se os exemplos se multiplicarem, toda a vida pode ser diferente. Para melhor!
Fernando Gouveia
