Alexandre Parafita

Alexandre Parafita

Bibliotecas que desmoronam

São as grandes vítimas deste maldito flagelo. Buscaram refúgio nos lares de 3ª idade, almejando um fim de vida calmo, um pôr do sol luminoso, menos solitário, rodeado do carinho que todo o ser humano merece, especialmente, nesta fase da sua vida.

Muitos deles, dezenas e centenas, tesouros vivos da memória coletiva, foram sendo meus parceiros no trabalho que abraço há décadas, enquanto etnógrafo. Guardiões do passado, narradores da memória, permitiram-me resgatar testemunhos valiosos de um património imaterial em risco, e desse modo soprar acendalhas para que se faça um pouco mais de luz no entardecer dos seus dias.

Gente guerreira, que moveu pedras e muralhas, construiu socalcos no Douro, gente mártir, torturada, que amargou anos, meses, dias, mas ainda assim capaz de louvar a Deus numa soberana gratidão… vejo-os partir, às centenas, tão ingloriamente nesta maldição que se abateu sobre a humanidade, como se um deus-algoz, qual Prometeu acorrentado, soltasse as amarras para com elas açoitar a terra, e assim mostrar quão efémera e insignificante é a condição humana. Quão frágil é o planeta dos homens, onde um simples abraço ou apenas o bafo de um olá podem pôr em causa a sobrevivência dos que amamos.

São bibliotecas vivas que deveriam ser eternas mas que se fecham e desmoronam abruptamente. Sofrem as famílias e os amigos. E a sociedade empobrece. Quebra-se o fio da memória que a cada geração incumbe passar à seguinte, para que a identidade de um povo tenha sentido. E perdure.

A minha homenagem a todos, aos que partiram e aos que resistem no silêncio dos seus recolhimentos. Devolvamos-lhes um pouco do nosso tempo. Que as suas rugas multipliquem histórias que desejamos ler e ouvir. Que sejam páginas de livros onde possamos continuar a aprender lições de vida.

In JN, 8-5-2020

 


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