Muitas vezes me têm sido expostas as dificuldades dos concelhos do interior, designadamente no nosso distrito. Confrontados com a desertificação humana e com as rápidas transformações económicas que os atiraram para um círculo de exclusão, os nossos concelhos mais antigos, que foram em tempos as verdadeiras células vivas do tecido nacional, encontram-se agora numa situação extremamente vulnerável, que coloca mesmo o problema da sobrevivência do actual modelo administrativo.
Em tempo de pré-autárquicas, é justo que se faça uma reflexão sobre a situação e se lancem ideias à consideração dos cidadãos eleitores.
Em meu entender, o actual modelo político do País, assente num monopólio da iniciativa política sedeado nos partidos, tem conduzido o poder local a estrangulamentos de diversa índole. Ainda há pouco tempo escrevi que é mais difícil submeter a votos uma lista independente numa autarquia de dimensão média do que propor um candidato à Presidência da República. Nas autarquias, como na escolha do poder central, nada se passa à margem dos partidos e da sua disciplina. E se, por vezes, a definição de linhas gerais de conduta e de orientação ideológica são necessárias para manter algum decoro e evitar populismos perigosos, a verdade é que nem sempre os partidos têm razão ao vincular os eleitos locais às suas posições políticas ou às suas estratégias conjunturais.
Este regime de iniciativa política tem tido várias consequências que considero nefastas; entre as mais graves estará o afastamento de pessoas sérias da causa pública, por não quererem vincular-se a fidelidades partidárias, e a divisão artificial de vontades locais que, congregadas, poderiam ter um efeito dinâmico sobre a vida social e económica. Quantas vezes estas divisões, provocadas por simpatias políticas divergentes, afastaram pessoas que tinham todas as razões para trabalharem juntas, por vezes até dentro da mesma família. E nem se diga que são questões ideológicas: a fronteira ideológica entre certas bases de militantes é tão ténue que dificilmente se perceberia numa conversa sobre interesses locais.
De resto, o papel das autarquias locais não é definir ideologicamente o País, mas promover a participação cívica das populações nos assuntos públicos mais imediatos, nos que de mais perto lhes dizem respeito. Não é nas autarquias que se define o regime do País.
Ora, os políticos têm sempre tentado fazer das eleições autárquicas ou um complemento do poder central ou a alternativa ao poder central. E os discursos variam consoante a probabilidade mais ou menos sólida de ganharem as eleições autárquicas. Já sabemos que o partido do governo, na perspectiva de perder estas eleições, afirmará sempre que elas não têm qualquer valor para efeitos de apreciação da acção governativa, mas, na perspectiva de as ganhar, afirmará o contrário, ou seja, que a sua vitória será a aprovação da política governativa. A oposição fará simetricamente o mesmo: na perspectiva de as ganhar, afirmará que as eleições são um cartão vermelho ao governo; na perspectiva de as perder, clamará que as autárquicas são o que são e que não afectam a possibilidade de derrotar o governo nas legislativas. É isto o discurso político, estranhando-se apenas que, no fim de trinta anos deste palavreado, a maioria dos eleitores se decida por fracturas partidárias.
As autarquias não devem ser contra-poder. O mais recente exemplo de França, em que as regiões são maioritariamente governadas pela oposição, demonstra que o jogo político, ao tentar fazer das regiões uma plataforma de combate ao governo, tem consequências desastrosas para os cidadãos. A culpa não será apenas dos eleitos regionais, mas também do poder central. Se o poder central privilegia os eleitos locais da sua cor e corta os víveres à oposição, a oposição local tem tendência a procurar os meios financeiros numa tributação local que os cidadãos, de direita ou de esquerda, terão de suportar. Numa região do sul de França a tributação aumentou, assim, só este ano, de 75%. Em Portugal não é bem assim, pois a autonomia fiscal das autarquias é reduzida. No entanto, na única área de tributação em que tinham escolha, uma boa parte das autarquias não hesitaram em votar as taxas máximas para a tributação autárquica.
Há, pois, que encontrar uma nova filosofia para o poder autárquico e uma nova pedagogia da função dos edis. As autarquias deverão ser, antes de mais, instrumentos de dinamização colectiva, despindo-se progressivamente da sua capa de honras de autoridade delegada. Hoje, as Câmaras são a caixa do correio de todos os ministérios e de todas as competências do governo central. Aparecem aos olhos dos cidadãos como mais uma manifestação do poder do príncipe (neste caso o governo central), concitando as correspondentes desconfianças e instintos de defesa. Ora, a autarquia devia ser antes de mais o povo unido à volta dos seus interesses e a gestão autárquica deveria ser confiada aos que mais capazes e mais activos se mostram na prossecução desses interesses. Deve ser um centro de apoio para os cidadãos e não um entrave burocrático às suas iniciativas.
Questões como a dinamização de actividades empresariais de interesse municipal, formação profissional dirigida à fixação de populações, certificação de produtos locais, recuperação urbanística do parque habitacional histórico, promoção do conhecimento da história local e de atractivos turísticos, aproveitamento das competências locais para o serviço da populações, dinamização dos espaços públicos, ordenamento do território municipal, entre outras, deveriam ser o programa de todos os candidatos a autarcas.
Bem sei que o Estado dá com uma mão e tira com a outra; algumas destas actividades são entravadas por burocracia que dimana do poder central. Repartições do Estado são por vezes o maior entrave às iniciativas sócio-económicas: é a escritura que se não consegue porque faltou o papel xis; é o espectáculo que não se realiza porque a sala não está aprovada ou porque não se obteve a licença a tempo ou se impõem regras de segurança proibitivas; é a licença camarária que depende da prova da propriedade; são as obras simples que exigem arquitecto e construtor com alvará, são os serviços técnicos que só servem para fiscalizar em vez de darem conselho, apoio e mesmo participação em projectos de interesse; é, enfim, o infinito calvário à volta de repartições que, todas, reivindicam ferozmente a sua competência, mas levam tempo a exercê-la.
Penso que alguns destes males seriam minimizados com a cooperação entre a autarquia e os diferentes serviços públicos. Não tenho notícia de que alguma vez esta cooperação tenha sido tentada. As Câmaras não falam sistematicamente com as repartições locais do poder central para estabelecerem linhas de cooperação e facilitarem a vida dos munícipes. E as repartições locais, porque não têm de dar satisfações às Câmaras, também não estão para isso.
Para uma nova mentalidade autárquica, muito haveria ainda a fazer. Mas, como passo inicial duma nova filosofia, começaria por sugerir uma iniciativa que não custa dinheiro nem depende do poder central; apenas isto: que as câmaras e as juntas de freguesia iniciem uma transformação cultural, deixando de se assumir como autoridades públicas fiscalizadoras e passando a assumir-se como delegados do povo para fazer avançar as iniciativas dos cidadãos e orientá-los para novas iniciativas. Para isso bastaria começar com um bom gabinete de apoio ao munícipe: não um daqueles gabinetes que o ensinam a preencher os papéis e lhe enumeram as diferentes obrigações a cumprir, mas um gabinete que assuma os interesses dos cidadãos e os faça avançar em nome e em representação deles. Estou certo de que as autarquias passariam a ser vistas com outros olhos e que, pouco a pouco, as crispações partidárias dariam lugar a uma convivência mais sã e mais dinâmica.