Por:
Adão Silva
Alexandre Parafita
Certamente a ninguém tem passado despercebido o intenso trabalho, esforço e altruísmo que, há vários anos, a Associação Cultural e Pedagógica “Ponte nas Ondas”, com o apoio de muitas entidades públicas e privadas da Galiza e do Norte de Portugal, vem desenvolvendo com vista à classificação pela UNESCO das tradições orais galaico-portuguesas como património da Humanidade.
Este labor culminou com a apresentação ao Ministério da Cultura de Portugal, e seguindo as instruções recebidas da UNESCO, de quatro áreas concretas do património imaterial a candidatar: 1 - Cancioneiro tradicional; 2 - Festas e rituais do Ciclo de Inverno; 3 - Lendas e mitos dos castros; 4 - Tradições agro-marítimas.
Relativamente à Região transmontana era a grande oportunidade dos Caretos de Podence e de outras manifestações rituais da nossa cultura, poderem obter a classificação pela UNESCO há muito almejada. Os Rituais de Inverno com Máscaras decorrem em Portugal no Nordeste Transmontano (Festa dos Rapazes de Aveleda; Festa dos Rapazes de Varge; A Mesa de Santo Estêvão de Rebordãos; As Festas de Inverno de Parada de Infanções; A Festa de Santo Estêvão de Ousilhão; A Festa de Santo Estêvão em Torre de D. Chama; A Festa de Santo Estêvão em Grijó de Parada; A Festa do Chocalheiro ou do Velho de Vale de Porco; A Festa dos Velhos de Bruçó; O Chocalheiro de Bemposta; A Festa da Mocidade em Constantim; A Festa dos Reis de Baçal; A Festa dos Reis de Rio de Onor; A Festa de Reis de Salsa; A Festa de Reis de Rebordainhos; Festas de Santo Estêvão de Vale das Fontes; A Festa do Santo Menino de Tó; A Festa do Menino Jesus de Vila Chã de Braciosa; O Entrudo de Lazarim; O Entrudo de Podence; A morte e os diabos de Vinhais) e nas duas regiões mais próximas a norte, na Galiza (Viana do Bolo; Vilariño de Conso; Manzaneda; Laza; Verín ou Xinzo de Limia; localidades do município de Chantada, Lugo), e a Este, na região de província de Zamora (El Tafarrón de Pozuelo de Tábara; El Zangarrón de Sanzoles; La Filandorra de Ferreras de Arriba; El Pajarico y el Caballico de Villarino Trás La Sierra; Los Diablos de Sarracín de Aliste; La Obisparra de Pobladura de Aliste; Los Cencerrones de Abejera; El Zangarrón de Montamarta; Los Carochos de Rio Frio de Aliste; Los Carnavales de Villanueva de Valrojo)
Se tudo isto não é património cultural profundamente identitário de um espaço transnacional, então é o quê?
Por mais incrível que pareça, o Ministério da Cultura, através do Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), tal não achou. E questionou sobre quem financiaria as acções de salvaguarda propostas, demonstrando, assim, que o Ministério lavaria à partida daí as mãos; questionou o serem quatro áreas de património, quando deveria ser apenas uma; invocou não existirem ainda inventários de património imaterial em Portugal; considerou que o conceito de “Euro-região” Galiza-Norte de Portugal apenas nasceu para fins de aplicação dos fundos comunitários, insinuando que não existe, sequer, identidade cultural entre as duas regiões (!). E mais, apenas respondeu cinco dias antes do fim do prazo de candidaturas à UNESCO (terminava a 30 de Setembro e a resposta chegou a 25), não permitindo já qualquer espécie de réplica ou reformulação.
Mas, pior que tudo isso, é que a resposta do Ministério aparece cheia de erros. Erros que envergonhariam qualquer aluno do “secundário” (“Tratam-se de áreas de intervenção”; “Tratam-se de manifestações”…), e erros de quem revela um total desconhecimento daquilo que é (e do significa) o Património Imaterial de um povo.
Por exemplo, relativamente ao lendário castrejo, o Ministério embora reconheça que “o projecto é interessante”, afirma que “o corpus não se apresenta como específico desta região, sendo possível encontrar versões paralelas um pouco por todo o país”. Como pode um Ministério da Cultura revelar tamanha ignorância? É do conhecimento geral, e não apenas dos especialistas, que existe uma área geográfica específica bem delimitada entre o Norte de Portugal e toda Galiza, que na antiguidade se denominava Gallaecia, com uma altíssima densidade de povoamentos castrejos e de lendário associado, que não se verifica em nenhuma outra região da Península Ibérica.
E a propósito das expressões e rituais em que se inserem os Caretos de Podence, o parecer do Ministério da Cultura afirma que “tais manifestações não são exclusivas do Nordeste Trasmontano, mas documentam-se em muitas outras regiões, inclusive no Sul de Portugal”, consistindo a diferença apenas em que umas têm máscaras, outras não. Ou seja, para os “sábios” do Ministério, a ritualidade destas manifestações e a simbologia que as arrasta desde tempos anteriores à nacionalidade, nada contam. O que conta são as máscaras!
Perante isto, o que podemos esperar, nós transmontanos, que tanto orgulho temos nos nossos valores culturais, na nossa memória colectiva, na nossa identidade, de um Ministério da Cultura que pensa desta maneira?
Um Ministério da Cultura que, pela via do reconhecimento público, com repercussões nacionais e internacionais, das nossas singularidades culturais, elevando-o à categoria de Património Imaterial da Humanidade, podia ter produzido, em simultâneo vário efeitos virtuosos.
O primeiro era proeminenciar o berço da cultura, da língua, das tradições que constituem o ADN da nossa realidade actual como Povo e Pátria.
A segunda era criar a oportunidade para esta região ibérica se afirmar na sua especificidade, publicitando-se e, por essa via, perenizar-se, sobrevivendo ao turbilhão arrasador de uma padronização sem alma e sem ethos que tende a obliterar as culturas locais de cada povo.
A terceira era lançar os alicerces para que as autoridades locais e regionais de Portugal e da Galiza pudessem afirmar-se no mercado globalizado das indústrias culturais e do turismo com mais este trunfo, num tempo em que voltam a estar na moda as genuinidades como repúdio às culturas massificadas, sem alma e sem paternidade.
A quarta consistia em fortalecer a auto-estima de Gentes que não desprezam a sua raiz identitária e teimam em a proclamar contra todas as hostilidades de uma cultura padrão, pouco tolerante com a diferença.
Foi tudo isto que os actuais responsáveis do Ministério da Cultura não perceberam.
Pelo menos que se compenetrem de uma coisa: eles serão transitórios e passageiros, as manifestações culturais que reclamavam pelo seu reconhecimento de Património da Humanidade estão muito mais perenes do que a sua arrogância lhes faz suspeitar, apesar de contarem já em milénios o tempo da sua existência.
(artigo conjunto de Alexandre Parafita e Adão Silva)