Numa semana de múltiplas emoções no reino da política, a luta pelo poder ao centro exacerbou os discursos e trouxe algum dramatismo para as aberturas dos jornais. O folclore não é novo e, para um cidadão atento, é apenas a espuma das grandes questões.
Vamos então às grandes questões: tem um povo e um país o direito de viver no quadro de um contrato entre ele e os seus governantes, plasmado numa constituição que define os limites do que se consente ao governo e os direitos mínimos que o governo deve reconhecer aos cidadãos e respeitar? O Tribunal Constitucional, ao decidir pela inconstitucionalidade de algumas normas do Orçamento do Estado para 2013, pôs em causa o interesse do país?
Num Estado moderno, as relações entre cidadãos e poder têm de manter alguma estabilidade. É por isso que as constituições, leis fundamentais, são normalmente aprovadas por amplo consenso do espectro político, de forma a que nelas se revejam a maior parte dos cidadãos, e que a sua modificação exige também um vasto consenso, consubstanciado em maiorias parlamentares alargadas. As constituições não são, assim, leis de circunstância ou de oportunidade, mas verdadeiros actos fundadores da paz social e da convivência pacífica dos interesses.
Os governos mudam ao sabor das circunstâncias e dos interesses que os suportam, ascendem ao poder e caem de acordo com o estado da opinião que, em dado momento, os cidadãos expressam. Nos mecanismos de conquista do poder têm enorme influência os métodos de comunicação e de marketing político. Tal como na publicidade, o exagero e a venda de ilusões fazem hoje parte do discurso eleitoral que se vende ao eleitorado. Neste estranho jogo de sedução, parecem embarcar não apenas os candidatos ao poder, o que seria natural, mas o próprio eleitorado, que acredita ou finge acreditar sistematicamente em quem melhor vende a ilusão de progresso e bem-estar, para se desiludir alguns meses depois com a dura realidade da prática política que, obviamente, nada tem a ver com as promessas feitas. E este é, ao que nos dizem com uma frase perfeitamente oca mas repetida até à exaustão, o pior dos regimes se exceptuarmos todos os outros, ou seja, o regime do mal menor! É caso para perguntar: então qual seria o mal maior? A ditadura, a democracia directa, a monarquia absoluta ou a anarquia?
O problema das democracias representativas é que se esgotam em muito pouco exercício livre por parte dos cidadãos. Depositado o voto, o feliz eleito só é julgado no período eleitoral seguinte, pelo que, durante o mandato, tem uma larga margem de manobra para os seus próprios jogos de poder, por razões de interesse de classe, de ideologia, de conluio ou de ambição de poder. Temos assim que um acto eleitoral em si mesmo democrático pode legitimar ditaduras e governos abusivos. Há muitos exemplos disso na história da democracia. Ora, um dos mecanismos para contrariar esses casos é o dos contra-poderes, pelo que num regime de democracia representativa convivem vários órgãos de soberania que se controlam mutuamente. Nos regimes ocidentais, a tendência para as maiorias parlamentares se apresentarem frequentemente como caixas de ressonância dos governos retira aos parlamentos muita da capacidade de contra-poder. E esse facto torna ainda mais importante a acção de outros órgãos, designadamente do poder judicial e, em especial, dos tribunais que têm como competência a defesa das leis fundamentais.
Entre nós, o Tribunal Constitucional é o garante da constitucionalidade das leis e tem sido chamado com frequência a decidir da validade de muitas leis, algumas de impacto mais mediático e de efeitos mais directos sobre os actos do governo, outras que dizem respeito directamente aos cidadãos e aos seus direitos fundamentais. O Tribunal não decide por critérios de oportunidade, mas por imperativos de legalidade constitucional. O Tribunal não governa, mas tem o estrito dever de garantir que os que governam o fazem de acordo com o pacto de governo ínsito na Constituição.
As críticas dirigidas ao Tribunal Constitucional após a recente decisão sobre o orçamento, por responsáveis da governação e outros, imputando-lhe as dificuldades que alegadamente resultam do julgamento para os interesses nacionais, são actos de rebeldia antidemocrática, porque ignoram que o principal dever de quem governa é o respeito do quadro constitucional, fonte última da própria legitimidade da governação.
Depois desta evidente prova de independência do poder judicial, parecem irrelevantes as disputas inflamadas de alguns responsáveis e antigos responsáveis de primeiro plano: Relvas seguiu o caminho inexorável da saída pela porta traseira, depois dum exercício atabalhoado no governo e do descaramento com que pretendeu justificar uma trapalhada a todos os títulos imoral.
Sócrates, sentindo o adversário que o bateu há dois anos em grande fragilidade, e aproveitando a desconfiança que se manifesta em relação ao Presidente da República, veio fazer o que sabe na televisão pública: comunicação e propaganda, num ajuste de contas entre políticos do mesmo calibre. Onde está, em qualquer deles, a estatura de homem de Estado?
Este é, decididamente, o tempo das hienas!