Num período de campanha eleitoral, é natural que a comunicação entre os pretendentes ao poder e os cidadãos eleitores aumente e que a linguagem utilizada se destine mais a convencer do que a esclarecer. Mas também é natural (e é nisto que se vê o grau de desenvolvimento cívico de um povo) que os cidadãos se dêem ao esforço de uma reflexão, por pequena que seja, para desmontar argumentos abusivos, promessas demagógicas, slogans indignos da política.
A capacidade de suscitar questões ou de comparar argumentos não é igual em todos os estratos sociais ou em todas as geografias eleitorais. Numa sociedade como a nossa, largamente urbanizada mas com franjas da população isoladas dos processos políticos e sociais, há, evidentemente, uma diferença de abordagem do fenómeno político consoante se viva nas cidades ou no mundo rural. A comunicação social de massas deveria colmatar essas diferenças, mas não o faz, ou não tem sabido fazê-lo de modo consequente. O resultado é que os resultados eleitorais se inclinam normalmente no mesmo sentido e privilegiam sempre o chamado círculo do poder, quando a reflexão cívica devia levar a clivagens na orientação do voto, já que diferentes são os interesses de uns e de outros. Concretizando: quando um dos partidos ganha as eleições, a vitória é normalmente o resultado duma subida da votação em todo o território nacional e não apenas numa ou noutra região. É raro que o partido que as perde tenha aumentado a sua votação em qualquer círculo eleitoral.
Será isto o resultado duma comunicação uniformizadora ou da reflexão cívica que leva os cidadãos a uma opção quase inevitável pela alternância?
Observando a campanha em curso, há sinais evidentes de que a comunicação é uniformizadora: os políticos locais tendem a reproduzir, por vezes palavra a palavra, a comunicação do chefe do partido. A imprensa escrita e audiovisual da chamada província tende a reproduzir a análise, o comentário ou a notícia da imprensa nacional. Não é raro que os comentadores da imprensa regional estejam ostensivamente colados aos partidos da sua simpatia e façam abertamente campanha no espaço da reflexão política. A crítica cívica independente é difícil em meios pequenos, porque pode trazer inimizades e os consequentes incómodos.
Nesta campanha, nada mudou relativamente às anteriores: a mesma agressividade, a mesma irracionalidade, a mesma verborreia vazia de sentido, as mesmas declarações bombásticas no lugar das críticas fundadas, o mesmo rosário de promessas no lugar da análise fria e objectiva da situação do país, a mesma preocupação de arregimentar em vez de esclarecer. Alguns exemplos:
O presidente do CDS-PP começou por anunciar uma campanha responsável e serena, com sentido de Estado e da responsabilidade governativa. Passados poucos dias apresenta um governo sombra de personalidades do seu partido, para, com base neste gesto perfeitamente inconsequente, vir a exigir que o PS faça o mesmo. Inventa o slogan de que ele responde e o adversário esconde. Deve reconhecer-se que a comunicação publicitária é a sua especialidade, e que a sua comunicação esconde muitas vezes a falácia das ideias. É evidente que a apresentação dum governo sombra não o compromete, nem a ele nem às personalidades apresentadas, já que só por milagre o partido estaria algum dia em posição de tomar a iniciativa de formar governo ou de ter tal número de governantes. Para além do mais porque tem um compromisso de coligação e os seus parceiros já lhe disseram que são os irmãos mais velhos. Por outro lado, é evidente que o PS não poderia responder a tal provocação, sob pena de ser acusado de triunfalismo antecipado e adiantar um calendário de escolhas que só decorre depois das eleições e em função dos resultados. Por isso, o slogan do CDS-PP é, no que respeita ao futuro governo, perfeitamente demagógico. Quanto ao facto de o slogan pretender resumir a oposição dos diferentes programas (uns que seriam omissos outros que seriam esclarecedores), o que se pode dizer é que Paulo Portas só se ouve a ele próprio. De facto, todos os partidos, bem ou mal, têm vindo a explicitar os seus programas, seja qual for o valor ou a credibilidade deles. As suas afirmações são, assim, perfeitamente rebatíveis, não resistindo a um mínimo de análise. E a tais afirmações chama-se em bom português mentiras.
Mas os outros chefes de partido seguem-lhe o método, com mais ou menos convicção, com mais ou menos habilidade argumentativa.
Pedro Santana Lopes cai no ridículo ao invocar a intervenção do Presidente da República para dirimir o diferendo que o opõe a Sócrates em matéria de debate televisivo. É evidente que cada força partidária é livre na condução da sua campanha. Ao pretender introduzir regras obrigatórias de comunicação eleitoral que não têm qualquer base legal, Santana Lopes pretende ditar a outros o momento e o modo da comunicação. Oculta manhosamente que houve propostas alternativas do adversário, fazendo passar a ideia de que o adversário tem medo. Deixou ardilosamente implícito o epíteto com que pretendia apodar Sócrates ao compará-lo aos meninos tímidos da escola, mas o silêncio politicamente correcto nada retirou à intenção injuriosa Ao comparar a intervenção do Presidente no caso TVI-Marcelo com a não interferência nessa disputa que ele próprio criou, Santana Lopes compara o incomparável e entra numa espiral de malabarismos de linguagem que só demonstram a sua imaturidade como homem de Estado. Afinal, a declaração antes da campanha de que o Presidente não seria o seu alvo caiu por terra: Santana não resiste a fazer-se passar por vítima, não querendo perceber que metade do seu próprio partido já o considera um empecilho. Santana é um problema para a governação do país porque o seu populismo e a sua clientela dificultam a busca de soluções governativas credíveis.
Sócrates podia nesta campanha fazer a diferença. Entrou nela com uma legitimidade indiscutível, com boa imagem e com algum crédito do tempo da sua passagem pela governação socialista na pasta do ambiente. Mas também ele não resistiu muito tempo à chicana política. A intervenção dele e dos seus pares a respeito da viagem dum ministro a São Tomé e Príncipe foi inútil e mostrou a tendência para atacar o acessório, o estilo, a forma, em vez de ir ao essencial. E o essencial era o programa político e as eventuais convergências que conseguisse nas Novas Fronteiras. Era a demonstração concreta de que fará melhor, propondo acções e não apenas intenções. A reforma da administrativa não pode ser apenas a redução de funcionários. Passa também pelo abandonar de clientelismos, dentro e fora dos quadros de funcionários (vinha a propósito a sugestão de Paulo Portas sobre os cargos de confiança política). Ainda nos lembramos da paixão de Guterres pela educação, que conduziu ao rápido equipamento das escolas em computadores mas que foi insuficiente em termos de formação indispensável dos monitores e dos alunos, em exigência de rigor na avaliação de escolas e alunos, em dinâmica da rede escolar, em moralização do recrutamento do pessoal docente.
Os partidos da margem do poder têm menos visibilidade na comunicação social. A ausência da área do poder dá-lhes maior liberdade na elaboração dos programas, já que os eleitores apenas os podem confrontar com as posições que venham a assumir no Parlamento, posições que, na maior parte das vezes, não terão efeito decisivo sobre as medidas legislativas. E é pena, porque há inovação nas soluções, porque há uma espécie de transparência que seria saudável na condução da política. Combatem naturalmente as maiorias de um partido e defendem a representação proporcional. Estão, nesse aspecto, mais próximos da democracia, mas causam algum prejuízo à estabilidade da governação. Não podem deixar de se assinalar intervenções infelizes, como a referência de Louçã a Paulo Portas a propósito do aborto, deslocada e injuriosa, ou a insistência de Jerónimo de Sousa na estigmatização daquilo que chama a política de direita do PS, em vez de explanar áreas concretas de cooperação. Um partido com algum prestígio entre as classes populares urbanas não pode dar-se ao luxo da ineficácia. Seria preciso demonstrar que o voto no PC é um voto útil em si mesmo, como meio de encontrar soluções políticas exequíveis e não apenas como meio de coacção sobre o PS. É que, entre os diversos partidos, há sempre uma parte do caminho que podem trilhar em conjunto sem por isso perderem a identidade. É essa parte de caminho que deveriam descobrir e explicar aos eleitores.
Se a intervenção dos partidos não mudar, se continuarem a lutar apenas pelo poder e em função dos calendários eleitorais, o sistema político não resistirá muito tempo. As rupturas são sempre dolorosas, mas são inevitáveis. Os mais diversos confrontos de opinião têm demonstrado que há, à margem ou no interior dos partidos, gente com capacidade para fazer muito melhor. Se os partidos não forem capazes de mobilizar essas capacidades, ou se essas capacidades não forem capazes de reformar os partidos, então é necessário que o sistema político mude para que isso seja possível.