Chrys Chrystello

Chrys Chrystello

Vivo numa terra de gente feliz (Açores)

Era uma vez uma terra de gente feliz, vacas felizes, um paraíso à face da terra. A economia ia de vento em popa, havia muitos hotéis, muitos turistas, e tudo parecia bom. o dinheiro corria  a jorros da fonte de Bruxelas para as vacas, com algumas esmolas para os pescadores, a Faixa de Gaza ia de vento em popa com o maior crescimento populacional do país, todos a viverem dos rendimentos sociais para compensar desigualdades e injustiças do passado, e o Estado ia finalmente livrar-se do cancro das empresas públicas onde se tinham albergado os imigrantes ilegais dos partidos no poder ao longo de décadas, enquanto aguardavam a regularização do seu estatuto e uma mudança de dinastia.

Faltava ainda acrescentar alguns toques à mágica receita da ministra Veronica Skvortsova, ministra da Saúde da Rússia.

A fórmula da eternidade: "O aumento da idade da reforma prolongará a vida".

Embora muitos pais tentem a todo custo evitar que seus filhos tenham frustrações, elas são importantes para o desenvolvimento humano, mas nem assim se evitavam as taxas de suicídio mais elevadas do país na terra das vacas felizes.

Os condutores felizes na terra das vacas sorridentes andavam nas estradas sem carta de condução, sem seguro, muitas vezes alcoolizados, a falarem ao telemóvel e a queixarem-se da necessidade de mais subsídios para a lavoura. Não era gente muito dada aos livros e estudos, pois o abandono escolar prematuro era o mais alto do país, mas isso devia-se sobretudo à felicidade de ir lidar com as vacas que sempre são mais interessantes que os chatos dos professores.

No setor dos serviços, em especial na indústria hoteleira e afins, havia um enorme amadorismo, má vontade, falta de preparação e desconhecimento de que o cliente é quem paga os salários dos funcionários, e para isso as belezas naturais não chegavam para encobrir o mau funcionamento do setor.

Por outro lado, pretendendo ser um setor virado para o turismo o ano inteiro, fechavam-se os balneários exceto de junho a setembro e não havia pessoal nadador-salvador sempre útil em praias de correntes e contracorrentes ocultas pelo benigno clima durante a maior parte do ano.

Os trilhos, sempre muito procurados pelos amantes da natureza, estavam sem manutenção adequada na maior parte do ano, sujeitos a chuvas, intempéries e derrocadas, além do normal acumular de lixo que se propagava em todos os cantos que nem praga de ratos. O lixo, ah! O lixo para que algumas vozes clamavam pela coincineradora que a Europa já não propugnava e nem era solução dada a dimensão das terras. E o povo, como era feliz como as vacas, continuava a mandar tudo para o chão, fosse no dia a dia ou nas inúmeras festas que aconteciam em todas as freguesias e lugarejos, sem entenderem que esse lixo e esses plásticos iriam voltar na comida para as suas mesas, fosse misturado com o sal ou no sistema digestivo de peixes e mariscos. A educação cívica ainda estava em estudo nos currículos das escolas que eles não frequentavam.

Era um povo tão feliz e sorridente que se mantinha colonizado, sem o saber, sempre atento e venerando às migalhas que os senhores atiravam das ameias aos servos da gleba. E, como atentos e venerandos sempre haviam sido, assim se quedavam, pois sabiam que as migalhas dos subsídios e apoios à lavoura, às artes e literatura secariam se deixassem de o ser.

Nem sabiam, nem a escola que tinham abandonado lhes ensinara quem dissera… "... As couzas que padecem os moradores desse afligido reyno, bastarão para vos desenganar que os que estão fora desse pezado jugo, quererião antes morrer livres, que em paz sujeitos. Nem eu darei aos moradores desta ilha outro conselho... porque um morrer bem é viver perpetuamente...".

Fora Ciprião de Figueiredo (Alcochete, 155? – Lagny-sur-Marne, 1606), 1.º e único conde da vila de São Sebastião (por D. António I de Portugal), por vezes designado por Ciprião de Figueiredo Vasconcelos, que se distinguiu como corregedor dos Açores durante a crise de sucessão de 1580, tendo governado o arquipélago durante o período conturbado que se seguiu à aclamação nas ilhas de D. António, Prior do Crato como rei de Portugal. A ele se deve a fortificação e organização da defesa da ilha Terceira que levou à vitória na Batalha da Salga.

Havia coisas ainda a melhorar, como dar vida ao velho burgo quando os milhares de turistas de cruzeiros caíam sobre a cidade quem uma praga de gafanhotos para encontrarem as lojas e museus encerrados, pois cumpriam o horário de repartição pública. Tinham de se abrir os urinóis da cidade fora do horário de expediente, recuperar a velha zona onde estava uma cadeia superlotada, descaraterizada por aterros, obras inacabadas, um monstro de galerias de cimento à espera de serem ajardinadas enquanto os mais afoitos iam ao casino tentar a sua sorte.

 Melhor sorte anunciava-se para o fabuloso esqueleto do velho hotel sobranceiro às mais belas lagoas do mundo que – segundo anunciaram - ia finalmente ser restaurado, mas nesta terra de promessas, mais vale ser como S. Tomé, ver para crer…

Havia nessa terra uma companhia de aviação muito complicada, tinha tanto débito que era capaz de afundar o Titanic, mas nunca ninguém me disse quanto é que pagava por cancelamentos de voos, desvios de aviões, acomodação de passageiros em terra, e as mil e uma peripécias de quem prefere voar na transportada aérea lá do sítio. Conheço picos de gente que te exigido reembolso por cancelamentos, atrasos, e sabe-se lá que mais, mas deixemo-nos de treta, numa época em que viajar é tão banal, essa companhia acrescentou o elemento surpresa a quem viaja e nunca se sabe se vai viajar, já que a horas raramente chega, e aproveita para dar a conhecer aos passageiros outros aeródromos e locais que não constavam do plano original de voo. E tudo sem nada pagarem, que generosidade.

Noutros pontos desta terra de gente feliz clamava-se pela expansão de dois aeródromos vizinhos, mas os interesses tribais e guerrilhas bairristas protelavam qualquer aumento das pistas de aterragem, enquanto os turistas iam ficando a ver navios, que um dia serão construídos, enquanto aquele que se encomendara, e fora recusado, andava feliz por terras da Noruega, mas isso é outra lenda, dessas das histórias mal contadas em que as terras de bruma eram férteis.

Quando em 2006 ou 2007 escrevi, num livro que poucos leram, que se deviam fazer reservatórios das águas pluviais que iam sempre parar ao Grande Mar Oceano houve quem se risse de mim, mas agora clamam que algumas terras sofrem uma seca como não há memória…nada que uns tostões de Bruxelas não resolvam para calar as vozes da seca.

Mas claro está que isto são apenas queixumes de quem nunca está satisfeito e quer sempre mais e mais do que estas terras e estas gentes podem dar.

Chrys Chrystello, Jornalista [MEEA/AJA (Australian Journalists' Association - Membro Honorário Vitalício, 1983-2018)]


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