Manuel Igreja

Manuel Igreja

O Novo Largo

Antigamente havia o Largo. Quase sempre se situava no centro da povoação, e era como que a sala de estar comum. Todos por lá passavam, todos por lá se demoravam, uns mais que outros, e todos por lá se viam, estimavam, cumprimentavam e mal diziam.

Era no Largo que germinava e se fortalecia o sentimento de pertença a uma comunidade. A identidade pessoal e colectiva pela soma das partes encontrava na sua superfície a raiz, mas alimentava-se da seiva brotada na lonjura dos tempos idos.

Uma pessoa ser e sentir-se daqui ou dali, era em boa parte resultado de cruzamentos fugazes, de olhares trocados com certa cumplicidade, e de saberes granjeados e passados de geração em geração em momentos de folias, de tropelias e quantas vezes de aflições.

Depois veio o desenvolvimento. Dizem. Abriram-se acessos, os aglomerados urbanos foram crescendo ao deus-dará e ao sabor de uns tantos, os muros físicos foram caindo, o sair de entre portas tornou-se mais fácil. O Largo foi perdendo quem por ele se quede, a identidade foi-se diluindo, e o sentido de pertença foi-se deslavando.

O Largo de cada localidade onde cada um era dele, acabou. Lestos no fugir de memórias nem sempre agradáveis por via de viveres frequentemente difíceis, vaidosos no exibir de novos hábitos supostamente superiores, e sufocados pelo som do silêncio assaz esmagador, começamos a pavonear ares cada qual muito cheio de si.

Mas o Largo não morreu. Alargou-se na capacidade de receber, ainda que se mantenha chão infértil ou quase, para o cultivo de identidades e de noções de se ser e de se pertencer. O longe tornou-se perto. Quotidianamente vive-se para dentro mesmo que por vezes por fora, mas nas horas de espairecer e de se entrelaçarem convívios, vamos à cidade maior, ao centro comercial, pedaço fértil de ilusões e de vendilhões.

No bojo das enormes superfícies acolchoadas e condicionadas, podemos hoje em dia encontrar os novos Largos. Nos seus atapetados corredores cirandam gentes à cata do passar do tempo, em busca desta ou daquela necessidade, mas imitando ou assumindo ares de modernidade, poucos se falam e pouco se vêm ainda que muito se cruzem.

Contrariamente ao que se diz num certo e famoso filme, tudo mudou e nada ficou na mesma. A vida comunitária esmoreceu, o pequeno comercio local e de rua mirrou, o sentido cívico quase desapareceu, mas quase ninguém ganhou, a não ser os centros urbanos de maior dimensão que à semelhança de um eucaliptal exauriram tudo em seu redor.

O processo é imparável. No entanto, não tem de ser necessariamente mau, e tem também factores de bem. O tempo moderno é isto. Urge é que impere a inteligência de maneira a que cada um jamais cada um se esqueça que estando no novo Largo, se não pode esquecer do antigo, daquele onde assenta a espinha dorsal que diferencia e distingue quem sabe de onde vem e para onde vai.


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