Manuel Igreja

Manuel Igreja

O Estado falhou. O País ardeu. Gente morreu

Palavra de honra que já andava a estranhar. Olhava em redor de nós, de Portugal, e mais para lá das montanhas e para além do mar, e só via e vejo desarrumos, insensatez e tudo sem prumo. Ao mesmo tempo, olhava para dentro do retângulo, e tirando a tragédia dos incêndios de junho e a ópera bufa do assalto ao paiol de Tancos, era um sossego.

Clima muito bom ao jeito de verão a impedir o outono e milhares de turistas nacionais e estrangeiros por aí na boa-vai-ela, a sustentar em grande parte o crescimento económico. Estávamos num quotidiano em verdadeira paz do Senhor. Um verdadeiro remanso nas inquietações que enegrecem o mundo.

Quanto nisto, aí meu Deus! De novo as labaredas irrompem e transformam Portugal num brasume de lés-a-lés. Quinhentos incêndios deflagraram num só dia de domingo. Um verdadeiro domingo negro, com felugem por todo o lado e dezenas de mortos. De novo.
Ainda o relatório cientificamente elaborado e sério tinha acabado de ser dado à estampa e de novo a desgraça. No mais alto dignatário da nação e no mais singelo cidadão grassou a negação. Não podia estar a suceder. Mas estava. Quatro meses volvidos repetia-se a desgraça. O assunto ao velho modo já estava quase esquecido, mas ocupou de novo as pantalhas e os escaparates.

Caso ainda vivêssemos ao jeito e no tempo dos nossos avós, logo todos nos poríamos a benzer com a mão esquerda para espantar o mafarrico por mais nos parecer ser obra dele tal coisa. Cruzes canhoto. Para longe o mau olhado e o mal da inveja. Nada tardaria que topássemos quem devido a ela encomendasse um fazer de trabalho para nos causar muito mal.

Mas não. Vivemos agora e sabemos a causa das coisas. Se não todas e de todas, pelo menos de algumas. Basta atentar um pouco. Refletir, pensar e isolar o que por vezes nos tolda a vista devido a ideias preconcebidas no alfobre dos preconceitos ideológicos ou afins.

Está tudo nos livros. Dizia-se antigamente. Agora está tudo escarrapachado no relatório que ao fim e ao cabo mais não faz do que confirmar que o Estado falhou aqui e agora. Não por ser este governo somente, diga-se antes de mais, pois se fosso outro e a coisa seria a mesma, uma vez que a teia tecida por interesses próprios e pelo feitio que nos é comum, a tal levaria.

Durante décadas improvisámos. Fizemos navegação à vista depois de cinquenta anos de viagem em terra firme e com rédea curta. Habituados e atidos às migalhas, rodopiamos junto aos poderes esperando prebendas. Por sua vez, estes atidos sempre às reverências e às alianças que se entrecruzam, nomeavam e nomeiam quem lhes serve e se lhes curva.

Por isso o Estado falhou no problema dos fogos com apagamentos comandados por servis de carreira com ar vagamente militar ao jeito de generais de opereta. Não preveniu porque isso não enche o palco, e falhou no combate porque as baratas tontas não sabem comandar. Não agiu bem e a tempo apesar da desgraça passada e adivinhada.

Portugal ardeu todo. Mas todos somos culpados. Emocionamo-nos, mas não limpámos, não exigimos, e não agimos. O pavio da emoção é curto. Extingue-se coma a mais ténue assopradela. Basta que alguém assobie para olharmos para outro lado.

A cidadania não nos fixa nem a cabeça nem o juízo. Quase nem sabemos o que isso é. Também por isso, o Estado falha, o país arde e muita gente morre. Digo eu. Não sei.


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