O Beijo

Óbvio que não estou nem de longe a pensar no Gustav Klimt.

Estou a falar do juntar os nossos lábios a outros, ou a outras superfícies. No dicionário acrescenta-se “pressionando” os lábios, ou "fazendo leve sucção”. Boa dica. Definem ainda o acto de beijar como sendo um gesto de carinho ou de amor.

Eu nisto concordo! Lido muito mal quando me dão dois beijinhos ocidentais assim, de repente, e muito menos quando pouco ou nada me conhecem. É que beijar é para mim uma coisa mais íntima, que aproxima os outros. E não queremos toda a gente assim tão perto.

Bom, padrões sociais à parte, de quem beijar, quando e como, este gesto é a porta de entrada para a adolescência e para as relações de cariz sentimental. É um marco aguardado com relativa paciência, mas com uma ânsia à mistura. Principalmente quando os nossos amigos começam a beijar, e a contar coisas que se passam nos beijos, mais concretamente dentro da boca.

O beijo, em certo momento da nossa vida, é um mistério profundo. Por Deus! E o que fazemos aos lábios, onde pomos a língua? Tem muita saliva, assim a ponto de enojar? E se inclinamos os dois para o mesmo lado e damos uma chapa de narizes?

E a mente adolescente criou métodos para aprender a beijar, para não falhar na hora da estreia. E talvez as revistas destinadas a essas idades (que, vi eu recentemente, ainda existem, e com os mesmos temas) pusessem constantemente mais lenha nessa fogueira que começava a queimar nos nossos peitos incandescentes.

Havia uma técnica, anunciavam, infalível. Consistia na parvoíce de colocar água num copo e gelo. E o treino resumia-se a apanhar as pedras de gelo com a língua, até ficar com o órgão parecido com um iceberg e deixar de o sentir, devido às diferenças de temperatura. Ouvi relatos de que este ensinamento funcionava, e que era “fantástico” (sim, claro, com 13 anos temos a certeza que não há beijo mais maravilhoso no mundo do que o dado ao namorado da época, ou à “curte”, apesar de o termo não estar actual). Espero que entendam que parecíamos um cão a beber água, e era precisamente essa a desculpa caso os nossos pais entrassem no quarto: estávamos a brincar aos animais de estimação. Para outros, não havia tempo de pensar e coordenar o aprendizado, e focam-se na memória do sabor da pastilha elástica de menta, que por ali estava a bailar, e a marcar compasso.

Fechar ou não os olhos? Outro drama absoluto. Se “fechar os olhos é porque tem sentimento”. Beijar de olhos abertos era sinal de desprezo. Hoje continuo a preferir os de olhinhos fechados. Mais nova, fechava os olhos para não ver, simplesmente. Ficava mais relaxada.

O que me metia mais confusão era parecer uma corrida de estafetas: “Miga, eu já fui, cumpri a minha missão. Agora, vai, e que as fadinhas dos beijos estejam contigo”. Por mais que sonhássemos com o beijo perfeito, como nos filmes, os amigos estragavam sempre esta ideia romantizada da televisão porque… queriam ver. Ter provas factuais de que beijámos na boca. Que tínhamos atirado para trás das costas a sigla BV (boca virgem). Uma espécie de fiscais dos beijos, que averiguavam com relativo pormenor se se tratava de um chocho ou de um beijo à francesa. Assim foi o meu primeiro beijo, como o do pessoal de metade dos liceus deste mundo, atrás de um pavilhão da escola, com uma multidão à volta. Não me lembro, tampouco, do beijo em si. Lembro-me só de estar nervosa, e de achar que tinha reunido os ingredientes para correr mal. Não tenho igualmente memória de ter beijado de novo o rapaz a quem dei o meu primeiro beijo de língua, o que diz muito a) sobre o beijo em si; b) sobre a profundida emocional de um adolescente que deixar de ser BV.

Meses volvidos sobre o primeiro impacto, de perceber que não vamos ficar presos por vácuo, que meter língua q.b. é agradável, e que não nos é permitido abduzir a mandíbula da pessoa que estamos a beijar, como se fosse um episódio do BBC Vida Selvagem, chega a altura de nos aperfeiçoar.

É como tudo na vida, não é? Não é preciso só saber, é preciso dominar. Nunca se encontra a medida certa, porque o beijo é subjectivo. Depende sempre de quem aceita as nossas investidas, e das preferências de cada um.

Há vários tipos de beijadores, a reter:

- Os dos contos de fadas: não mete língua nem saliva, é como roçar os lábios nos azulejos do WC. Visualmente pode ser bonito e cumprir um objectivo (por exemplo, quebrar feitiços) mas sentimos que falta ali qualquer coisa;

- Os dentistas: fazem limpezas completas à cavidade oral, e batem saliva em claras em castelo. Ficam a conhecer cada um dos dentes do beijado com um pormenor medonho. Avançam para a garganta com relativa facilidade. No final, entregam um molde da arcada dentária completa;

- Os exploradores: não se focam só na boca, mas em tudo que está à volta, acima e abaixo. Deixam o parceiro confuso, porque nunca se sabe quando é para continuar a beijar, ou se vai começar o rodízio de beijos. Por isso, não raras vezes, o parceiro fica a beijar no vazio. Podem ser também denominados de “carniceiros”.

- Os sem-sal: saliva a mais ou a menos é a morte do artista. Há quem afogue o outro, há quem fique a dançar um slow e se esqueça que é a altura ideal para dar uma de kizomba.

Enfim, o beijo é o primeiro contacto com alguém, é sempre uma novidade: o toque, o sabor, a dinâmica. Um beijo elucida, une ou desapega. A grande diferença em relação ao período da adolescência é que ficamos mais selectivos, damos beijos mais discretos e sabemos mais ou menos o que fazer. De resto, deve ser tal e qual como quando éramos miúdos.

 


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