Alexandre Parafita

Alexandre Parafita

Nossa Senhora disse-lhe para ter paciência…

[Hoje, o Dia Internacional pela eliminação da Violência contra as Mulheres]

Um dos trabalhos etnográficos que trago em mãos levou-me, por estes dias, até à lenda de Nossa Senhora do Pereiro, em Santa Comba de Rossas, no concelho de Bragança. Já se sabe que respeito muito as lendas, não tanto pelo conteúdo (em alguns casos, preferia até nem o conhecer…), mas por achar nelas uma visão fundamentada da cosmogonia popular, e poder, por essa via, conhecer o pensamento ancestral do povo, percebendo também como, com o avançar dos tempos, esse pensamento evoluiu. Não temos, pois, que aceitar as suas verdades, basta que consigamos interpretar, ou decifrar, a sua dimensão simbólica. E assim perceber como as lendas marcam sempre um espaço residual, nebuloso e ambíguo, da realidade, acomodando-se nas frinchas e vazios de um conhecimento epistemológico mais estruturado.

Reza então essa lenda (e faço uso de uma versão que resgatei das memórias de uma idosa no lar de Santa Comba de Rossas) que a Virgem apareceu na ramagem de um pereiro (e daí o nome que tomou) a uma infeliz camponesa da aldeia, procurando confortá-la por todos os dias apanhar uma grande sova do marido. E diz também que, numa afirmação de solidariedade com o seu drama, a aconselhou a ter paciência com ele, o esposo. Mais tarde, o homem morreu, ela professou e quando também morreu… ficou santa.

Assim o diz a lenda. E as lendas são assim mesmo. Uma espécie de foral que as civilizações antigas legam às gerações vindouras, com os seus modelos de vida, de virtude, crenças religiosas, instituindo prémios de resignação, vulgarmente inspirados nas compensações obtidas pelos velhos mártires da Igreja tornados santos após a morte. No caso de Rossas, o modelo é claramente o da resignação perante a violência conjugal, como espelho do exemplo desses velhos mártires da Igreja, modelos de submissão, recompensados após a morte.

Uma mensagem que os tempos claramente corrigiram. Já nem as vozes mais autorizadas da Igreja a suportam. Mulher nenhuma merece conselhos desse teor. Aos sacanas que as maltratam, cadeia com eles. Ainda que alguns acenem com os cifrões e milhões em que se movem, nenhum pecúlio deverá servir de “gratificação” a uma mulher humilhada.


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