Fernando Campos Gouveia

Fernando Campos Gouveia

Mercadores da morte

Tendo vivido algumas décadas de vida, posso apreciar as transformações ocorridas na sociedade à medida que as tecnologias se desenvolveram e que os valores tradicionais sofreram uma erosão lenta, mas inequívoca. As famílias numerosas e estáveis, que reuniam à volta da mesa pelo menos três gerações, deram lugar a famílias efémeras, sucessivamente dissolvidas e reconstituídas, nas quais o desejo – legítimo, sem dúvida – da realização da felicidade individual parece superar a noção de felicidade familiar de há alguns anos, que exigia abnegação e muitos sacrifícios. A sociedade tornou‑se hedonista, insaciável no que toca a bens materiais, à exibição da imagem pessoal e do sucesso, à busca frenética de novas modas e sensações que se exibem em espetáculo constante.

 

Nem a morte escapou a esta tendência. Dou comigo a pensar nos episódios de luto e recolhimento que marcaram a minha infância e juventude. A pavra‑chave, para além das lágrimas dos familiares e da solidariedade dos amigos, era o silêncio. O recolhimento velado perante a inevitabilidade do fim, que se submetia à vontade de um deus ou à inexorável lei do tempo que tudo transforma. Hoje, a morte, sobretudo se se trata de alguém que, em vida, saiu do anonimato do simples cidadão para o estrelato dos meios de comunicação, é mais um pretexto de espetáculo, iniciado com as notícias do dia e continuado nas manifestações encenadas, não desprovidas de alguma hipocrisia, que transformam o recolhimento e o silêncio em longos programas laudatórios, repetidos incessantemente, até que um outro estímulo os remeta para o arquivo morto.

 

Escrevo esta nota pessoal numa semana pródiga em mortes de famosos. Em Portugal, a morte de um jornalista bem sucedido, de um ator de teatro, de um músico popular e de um grande empresário. Em França, cuja atualidade me entra diariamente em casa, a morte de um académico famoso (Jean d’Ormesson) e de um ídolo do rock (Johnny Halliday). Ressalvadas as proporções da respetiva fama e da longevidade de cada um dos falecidos, o que mais impressiona é o tempo gasto na generalidade dos órgãos de informação a vasculhar os mais recônditos pormenores das suas vidas, a apropriar‑se com instinto mercantilista da dor dos familiares e amigos, a passar em contínuo os momentos que os tornaram famosos ou a desvendar as horas menos boas em que passaram despercebidos.

 

Numa sociedade em que a realidade se mede pela comunicação, talvez estas consequências sejam inevitáveis. A trombeta da notícia é a matéria‑prima do espetáculo, o comentário que se tece é mais um ato de propaganda de algum político ou o vão desejo de estar ali no momento certo. Alguns dias depois, lançadas algumas flores sobre o caixão, caídas as primeiras pazadas de terra sobre o corpo dado à terra, o espetáculo seguirá num novo ato, rei morto rei posto, ficando para uns poucos, familiares, amigos e verdadeiros admiradores, a memória conformada das obras deixadas, das emoções partilhadas, do trilho percorrido e de algum sinal indelével que marcará alguma linha na história.

 

Bem podem os da minha geração lamentar a intrusão no seu silêncio, a violação da sua intimidade dorida, a mercantilização da suas dores e das homenagens merecidas aos que, em vida, justificaram o respeito dos seus contemporâneos. Os mercadores da morte, esses, já estarão noutra frente, o espetáculo tem de continuar, seja com imagens de miséria extrema, de incêndios devoradores, de guerras imorais ou de tricas de comadres. Talvez então os mortos descansem em paz.


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