Manuel Igreja

Manuel Igreja

Doutor Camilo

Não se poderá dizer de modo algum que tenha sido amigo íntimo do senhor Doutor Camilo de Araújo Correia, o nosso Dr. Camilo, mas tive o privilégio de conviver por vezes com ele para troca dois de dedos de conversa que jamais em tempo algum foi de circunstância ou para se não estar calado.

Por uma boa mão cheia de ocasiões tive o gosto de apreciar na sua sala de visitas um qualificado vinho fino. Ele fazia questão de enriquecer a sua recção calorosa sempre com um cálice de néctar em louvor da região e de mais as suas gentes. E uma pessoa bebia e saudava.

Podia o pobre vir sem esmola, mas não vinha o visitante sem o escorropicho de um vinho do Porto de estala, por entre o muito que se aprendia a escutar o doutor Camilo, homem capaz da mais fina ironia do mais requintado humor, e da mais sincera amizade.

Nas vezes que o visitei no seu canto, sempre tive a sensação de estar no centro de um universo muito próprio no qual o decorrer do tempo se não notava. Não se podia ir ter com ele levando-se pressa. Caso assim sucedesse, o mais certo que havia era colocar-se a dita a um canto acomodada pela agradabilidade e pelo interesse da conversa que se desfiava que nem linho em fuso manuseado por mãos sabedoras.

Era um mestre filho de outro mestre. Uma pessoa encantava-se a ouvi-lo e mais lhe apetecia estar com ele de cada vez que se estava. Sabia de muita coisa e discorria com encanto. A cada oportunidade surgida por palavra dada, despontava um dito motivador de largo sorriso aconchegador de almas e de corações. Era um encanto e fazia questão de o ser espalhando bom agrado e carisma.

Tive a sorte de aprender com a sua mestria nas coisas e nas loisas da escrita. Senti o privilégio de partilhar com ele durante muitos anos as páginas do jornal “O Arrais” que ajudou a fundar. Acompanhei muito por dentro o elaborar deste semanário reguense por quem sei que sentia muito carinho. Testemunhei a religiosidade com que enviava os seus manuscritos, e senti o respeito com que eram rececionados na redação.

Em cada semana recebia-se uma preciosidade, era o que era. Houve um tempo em que me competia aprontar o jornal para ser impresso e mostrado aos leitores. Tive sempre a noção do quanto representava o espaço ocupado pelas palavras nascidas no bico da caneta do Doutor Camilo, naquele conjunto de páginas por mim vistas como o largo da nossa terra. Mais que o banco para descanso, os seus textos eram um candeeiro feito com arte para alumiar tudo em redor. Liam-se e saboreavam-se lentamente, enquanto se regava com eles o canteiro da inteligência. Foi muito bom.

Camilo de Araújo Correia foi um reguense dos quatro costados. Cidadão empenhado soube identificar o que era importante e onde era essencial a sua ajuda. Arregaçou as mangas quando foi necessário e tirou-se de cuidados. Interveio na hora e na medida certas. Ocupou lugares importantes, mas nunca se pôs em bicos de pés. Ao que julgo, também nunca olhou alguém de cima para baixo a não ser para o ajudar a levantar-se. Foi um senhor.

Estive com ele pouco tempo antes da sua última viagem para o Porto. Lembro-me bem. Sabia que o mais certo era que fosse a última e que a seguinte seria para um sítio onde não contam nem o tempo nem a distância, mas encetou a jornada com a maior das dignidades. Deve ter sido como um vou ali e venho já, se bem o conheci. Não tornei a vê-lo fisicamente, mas não o esqueci o seu porte encantador de homem mais velho.

A sério Dr. Camilo. Sá queria que me tivesse legado um pouco da sua mestria nestas coisas de alinhar palavras. Bem que escusava de a ter levado toda consigo. O S. Pedro que ma mande por favor na volta do correio. Fico à espera. É que não me é conveniente por agora ir aí busca-la. Nem sei se aí há vinho tratado do pipo do patrão. Se houver, beba um cálice à nossa saúde por favor.


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